data-filename="retriever" style="width: 100%;">Nos anos de 1980, morei em Corumbá, no Mato Grosso do Sul, e meu mundo se recheou de situações hilárias, imprevistas, interessantes e enriquecedoras que me rendem boas lembranças.
Hoje, lembrei de lá e do aluno que me fez o pedido mais excêntrico destes 47 anos de vida professoral. Seu nome era Itura (da mata), um índio bororó que liderava o grupo formado por: Mógo Doge (peixe pintado), Útugo Kúri (flecha longa), e Kado Mogorége (do taquaral). Itura era a aposta da tribo para ser o primeiro com curso superior. Tinha a minha altura, pele cor de cuia, cabelo longo liso, fala macia, olhar penetrante e sereno. Pontual, assíduo, esforçado, se destacava nas notas.
Um dia me disse: "a senhora pode me arranjar sapatos?" Sem que eu respondesse, falou: "nunca tive sapatos, fiquei sabendo que o exército vai fazer sapatos para os soldados e estão medindo os pés, a senhora pede para eles medirem meu pé e me fazerem um sapato? Não compro porque meu pé não entra no das lojas".
Falou e desapareceu. Conhecendo o comandante, comentei o fato, e ele prontamente disse: "mande-o aqui que farei seu sapato."
Dias depois, aparecem os sapatos na minha sala. Itura marejou os olhos, abraçou a caixa, saiu feliz, retornando dias depois me convidando para almoçar na sua casa, pois seu pai queria me agradecer. Aceitei, combinamos dia, hora, local, e me fui.
Fomos de barco, uns 50 minutos pelo Pantanal, depois uma caminhada e chegamos na aldeia. Ali, entendi a causa de se chamarem Bororó (pátio da aldeia), é porque constroem as casas em forma circular deixando o pátio como centro da aldeia e espaço de ritual e cerimônias.
Mal pude observar e quatro índios se aproximaram, era a estrutura de poder da tribo: o Boe eimejera, chefe da guerra, da aldeia e do cerimonial; o Bari, xamã dos espíritos da natureza; o Aroe Etawarare, xamã das almas dos mortos; e o Brae eimejera, negociador com os brancos, o chefe político, único vindo de eleições diretas, não segue as orientações tradicionais, e expressa a separação entre o chefe político e o de cerimonial.
O pai de Itura era o Brae eimejera, vinha de uma linhagem de chefes, e preparava o filho para lhe suceder. Estava honrado com a visita, pois seu herdeiro agora tinha sapato.
Teve dança, benção, caça, fruta, bom papo, presente e informação. Soube que eram mais de 3 mil, tradicionalmente caçadores, coletores e faziam agricultura de subsistência. Se destacavam na confecção e comercialização de artesanato com plumas (cocar e braçadeira) e pela pintura corporal. Eram respeitados no comércio, e tinham incidentes casamentos com regionais, aumentando os mestiços na comunidade.
No final daquela tarde parti com o convite para retornar na Festa do Milho e da Perfuração (orelha e lábio) dos jovens, mas isto não se efetivou.
Caro leitor, já lhe fizeram um pedido incomum?